terça-feira, 19 de janeiro de 2021

A função das coisas

Ela vinha pensando muito na função das coisas. Recentemente ouvira uma especialista em menstruação dizer que, ao contrário do que normalmente nos dizemos, todos os meses, a função da menstruação não é indicar que não estamos grávidas. Não é lavar o corpo da vergonha do que não houve, ou restringir movimentos e escolhas por meia dúzia de dias. Não é, tampouco, para que mulheres tenham inveja dos homens e amaldiçoem seus corpos quando eles insistem em se contorcer, machucar e torturar-se pela ausência de um bebê. Não. A função da menstruação é, antes de qualquer coisa, menstruar, e apenas isso. Uma função tão natural quanto o renovar da pele ou o bocejar das bocas ou o estalar das juntas. Estava ali, antes de qualquer coisa, para sua função mais primordial e simples, uma função em si, antes de ser um serviço. Somos nós que, ao observar, buscamos dar sentido, atribuir concepções e usos para o que fazemos. Nos afastando, então, da simplicidade do ato. Uma mente que busca incessantemente codificar padrões e sentidos não gosta da banalidade. A mente não gosta de ser lembrada quem apesar da sua posição nobre na nossa cultura, também é supérflua. 


Ao caminhar até o supermercado, atravessou a auto estrada que margeava o mercado. Observou mais uma vez a coruja, enorme, impressionante, que estava à sua beira. Morta. Ela já estava ali há uma dezena de dias, talvez mais. Da primeira vez que a vira, suas asas desordenadas apontando para um céu para o qual jamais voltaria, seus olhos que pareciam ainda atentos, recém incapazes de localizar presas a dezenas de metros, e achou aquela morte um desperdício.


Quando passava por ela e estava ouvindo alguma música triste, pensava em tirá-la dali, preservá-la dos olhares alheios. Devolver-lhe a dignidade. Já quando ouvia uma batida mais agressiva, pensava no memento mori que ela representava, toda a grandeza e insignificância da vida contidos ali. Milhares de anos de evolução e uma criatura tão imponente, morrer assim, provavelmente atropelada por um Celtinha 2004. Pensou em um dos maiores incômodos do seu imaginário: morrer na praia. Quase conseguir. Pensou em sua cadela, por quem lutara para que conseguissem mudar de país juntas. Um ano de burocracia, atravessando países de avião e estados de carro e trem, e muitos milhares de reais depois, morrera seis meses depois de chegar, muito antes do tempo natural de um cachorro, deixando uma ausência que ser humano algum seria capaz de gerar. Pensou na dificuldade que tinha em aceitar que a sua vontade pura não havia sido capaz de manter a morte à deriva, a inevitabilidade dela, pesada e inerte como o corpo do seu cão quando pôde abraçá-la na veterinária, sem vida, e sem sentido. Qual era a função disso? 


Fez as compras como em suspenso, o piloto automático tomando conta da lista de compras como um mecanismo bem oleado. Sentiu o peso das compras. Na volta, passou novamente pela coruja, ou o monte de penas que assinalava o que ela um dia fora, e pensou de novo na função das coisas, e a função da morte. A função da morte é morrer. 


sexta-feira, 17 de maio de 2019

Atualização

Daqui pra baixo quem viu, viu. Obrigada a todos os envolvidos, e perdoem os (tantos) trocadilhos ruins.

A função das coisas

Ela vinha pensando muito na função das coisas. Recentemente ouvira uma especialista em menstruação dizer que, ao contrário do que normalment...